Avanço recente acelera tendência estrutural iniciada no início dos anos 2000; renda dos mais pobres cresce e desigualdade atinge menor índice em duas décadas
O Brasil alcançou, em 2024, os menores níveis de pobreza e extrema pobreza desde o início da série histórica do IBGE, em 2012. Mas a explicação para esse marco não cabe em narrativas simplistas. A melhora observada nos últimos anos é resultado de um ciclo longo de construção institucional, iniciado no começo dos anos 2000, ampliado por políticas sociais, fortalecido pelo mercado de trabalho e acelerado recentemente pela recomposição da renda dos mais pobres. A queda da pobreza não é mérito exclusivo de um governo, é fruto de 25 anos de políticas públicas, ciclos econômicos, disputas políticas e decisões estratégicas sobre salário mínimo, emprego, Previdência e programas de transferência de renda.
Os dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS 2024) confirmam a mudança estrutural do país. A extrema pobreza caiu de 4,4% para 3,5%, enquanto a pobreza recuou de 27,3% para 23,1%. No total, cerca de 10,5 milhões de brasileiros deixaram essas condições apenas em 2024. A renda domiciliar per capita chegou a R$ 2.017, o maior nível da história da série, e a renda dos 10% mais pobres avançou 13,2% em um ano, uma recuperação rara em períodos curtos. A desigualdade também recuou: o Índice de Gini atingiu 0,504, seu menor valor desde 2012.

A economia explica parte fundamental desse movimento. Mais de 70% da renda das famílias brasileiras vêm do trabalho; portanto, quando o mercado de trabalho se expande, a pobreza tende a cair. A taxa de ocupação atingiu, em 2024, o maior nível em mais de uma década, refletindo a abertura de vagas, a recomposição pós-pandemia e a expansão de oportunidades em serviços, construção e comércio. Paralelamente, a renda real cresceu, impulsionada por sucessivos reajustes do salário mínimo, que afetam diretamente aposentadorias, pensões, benefícios assistenciais e trabalhadores de baixa renda — mecanismos que reduzem desigualdade quase de forma imediata.
Os programas sociais completam esse tripé. Segundo o próprio IBGE, sem as transferências de renda, a extrema pobreza teria subido de 3,5% para 10% da população, enquanto a pobreza passaria de 23,1% para 28,7%. Isso significa que a rede de proteção social, construída ao longo de décadas, impediu que milhões de famílias retornassem à miséria, sobretudo em períodos de fragilidade pós-pandemia.
Do ponto de vista político, a redução da pobreza não é obra isolada, mas resultado de camadas históricas que se acumulam. Entre 2003 e 2014, houve o maior ciclo de expansão do emprego e da renda da história recente, com forte formalização, aumentos reais do salário mínimo, consolidação do Bolsa Família e queda robusta da desigualdade. O período seguinte, de 2014 a 2021, foi marcado por recessão, desemprego elevado e perda de renda, agravados pela pandemia, quando o Auxílio Emergencial evitou uma tragédia social de maior escala. A partir de 2022, iniciou-se uma reaceleração. Melhora do mercado de trabalho, recomposição do poder de compra das famílias, retorno do desenho original de políticas sociais e reajustes reais do mínimo contribuíram para a recuperação dos mais vulneráveis. A ampliação de benefícios para crianças e adolescentes também reforçou a rede de proteção.


O que o país vê agora não é um fenômeno isolado, mas a continuidade de um processo longo. A queda da pobreza em 2024 retoma uma trajetória iniciada há mais de duas décadas, interrompida por crises econômicas e pela pandemia, e reforçada recentemente pelo mercado de trabalho e pelas políticas sociais. Esse avanço não nasce nem termina em um único governo: ele resulta da soma de decisões econômicas, escolhas políticas e programas sociais construídos ao longo de 25 anos.
A pobreza no Brasil (2014–2024)
A década de crise antes da retomada
| Ano | Contexto | Impacto social |
|---|---|---|
| 2014 | Início da recessão profunda | Desemprego começa a subir |
| 2015–2016 | PIB cai dois anos seguidos | Pobreza cresce; inflação aperta famílias |
| 2017–2018 | Crescimento econômico fraco | Informalidade dispara; empregos precários |
| 2019 | Economia estagnada | Renda parada; desalento aumenta |
| 2020 | Pandemia e choque no mercado de trabalho | Auxílio emergencial evita colapso social |
| 2021 | Redução dos auxílios | Pobreza explode; comida fica mais cara |
| 2022 | Inflação muito alta | Renda baixa; programas sociais instáveis |
| 2023–2024 | Mercado de trabalho reacelera | Pobreza e desigualdade caem ao menor nível da história |
Fonte: IBGE – Síntese de Indicadores Sociais (SIS 2024)
Pobreza por região do Brasil
Brasil – 2024 (IBGE, SIS 2024)
| Região | Extrema pobreza | Pobreza |
|---|---|---|
| Nordeste | 6,3% | 39,4% |
| Norte | 5,8% | 35,9% |
| Sudeste | 2,1% | 17,4% |
| Centro-Oeste | 1,6% | 14,2% |
| Sul | 1,5% | 12,8% |
Fonte: IBGE (SIS 2024)
A década perdida dentro da década perdida
A história social do Brasil raramente caminha em linha reta. Entre 2004 e 2014, o país viveu seu período mais virtuoso de redução da pobreza e da desigualdade. Emprego forte, renda real em alta, políticas sociais bem estruturadas e expansão econômica produziram uma combinação improvável: milhões ascenderam, e o país parecia, enfim, ter encontrado o caminho da inclusão.
Mas esse ciclo virtuoso foi seguido pelo período mais duro desde os anos 1980. A partir de 2014, entramos numa tempestade perfeita, econômica, política e sanitária, que desmontou boa parte dos avanços. A pior recessão em quase um século, a informalidade crescente, a inflação insistente, o achatamento da renda e a pandemia reconfiguraram o mapa da pobreza.
Criou-se, na prática, uma década perdida dentro da década perdida. E não foi por falta de instrumentos: foi por falta de coordenação política, estabilidade e continuidade institucional.
Nada disso, porém, invalida o esforço de décadas. O Brasil só conseguiu atravessar esse período porque possuía uma rede social relativamente madura. Foi essa arquitetura construída por diferentes governos que segurou o país de um colapso social.
Por isso, quando celebramos os números históricos de 2024, temos a obrigação intelectual e moral de reconhecer que o avanço é real, mas não nasceu ontem. Ele é fruto de 25 anos de escolhas acumuladas, acertos, erros, adaptações e de políticas que sobreviveram às disputas de ocasião.
O desafio agora é evitar outra década perdida.
2003–2014: O ciclo de avanço social no Brasil
O período que estruturou a queda da pobreza antes das crises
| Eixo | O que aconteceu | Impacto social |
|---|---|---|
| Emprego | Maior expansão da história; formalização crescente | Renda estável e redução da pobreza pelo trabalho |
| Renda | Valorização do salário mínimo acima da inflação | Aposentadorias, pensões e BPC ganham poder de compra |
| Políticas sociais | Bolsa Família estruturado com condicionalidades | Redução forte da pobreza infantil e feminina |
| Inclusão | Cadastro Único consolidado; expansão do ensino técnico | Aumento da mobilidade social e acesso a serviços |
| Desigualdade | Queda contínua do Índice de Gini | Menor distância entre ricos e pobres desde os anos 1980 |
Fonte: IBGE, Ipea, Pnad Contínua
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