O erro como método: a estratégia discursiva por trás do gesto de Derrite

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Sob as lentes da semiótica, da semântica e da hermenêutica, o episódio mostra que o “erro” não foi falha, mas estratégia discursiva, um ato de poder travestido de recuo.

Na política, o erro raramente é apenas um deslize. Às vezes, ele é o próprio método, um recurso de linguagem calculado para testar os limites do discurso e medir o alcance do poder. O episódio envolvendo o deputado Guilherme Derrite (PP/SP), relator do projeto de lei (PL) Antifacção, é um exemplo cristalino desse mecanismo. Ao propor e depois recuar, a limitação da atuação da Polícia Federal (PF) no combate ao crime organizado, Derrite não tropeçou em um equívoco técnico. Fez um gesto semiótico preciso, de quem compreende que, no jogo político contemporâneo, comunicar é agir.

Sob três lentes: semiótica, semântica e hermenêutica, a “limitação” proposta por Derrite revela-se um ato discursivo deliberado. Ele se coloca, simbolicamente, como aquele que tem poder suficiente para “tocar” na PF, instituição historicamente blindada, símbolo de moralidade e autoridade no imaginário popular desde a Lava Jato.

Mesmo sabendo que a proposta não passaria, o simples ato de enunciar o limite já produz efeito. Comunica força para sua base política, tensiona o governo, testando até onde pode ir e cria uma narrativa de “quem realmente manda no combate às facções”. É o que Peirce chamaria de signo performativo: o gesto é o próprio ato de poder, mesmo que revertido depois.

Semioticamente, o gesto comunica força simbólica.
Ao propor restrições à PF, ele aciona o signo do poder, o mesmo que envolve a ideia de autoridade, comando e soberania sobre as instituições. Derrite se coloca, assim, como aquele que ousa tocar naquilo que ninguém toca, reforçando sua imagem de protagonista político capaz de interferir em esferas consideradas intocáveis. Mesmo o recuo posterior não apaga o signo inicial; ao contrário, o consolida. O gesto cumpriu sua função: gerar ruído, atenção e centralidade.

Semanticamente, há um jogo calculado de palavras.
O verbo “limitar” é carregado de ambiguidade. No campo jurídico, pode significar apenas delimitar competências; no campo político, soa como enfraquecimento. Ao escolher esse termo, Derrite não apenas comunica, mas provoca. Cria um campo de conflito intencional entre significante e significado, e nesse atrito produz narrativa. A crise que se segue não é um efeito colateral, é o produto final. O conflito gera manchete, e a manchete sustenta o personagem.

Hermeneuticamente, o movimento é de negociação e de barganha.
Ao incluir no texto pontos sabidamente inaceitáveis, o relator cria margem para retirar o que já planejava ceder, preservando o que realmente interessa. É a técnica legislativa do “lançar tudo na mesa para salvar o essencial”. Quando recua, Derrite emerge como moderado e razoável e garante protagonismo político sem perder o núcleo de sua estratégia. O “erro”, nesse caso, é a forma mais sofisticada de método: o tropeço calculado que produz autoridade.

Em termos de teoria da comunicação, o episódio é uma demonstração prática do que Marshall McLuhan chamaria de “a mensagem é o meio”. O gesto, e não o texto, foi a verdadeira mensagem. A comunicação antecede o conteúdo. Derrite atuou como um estrategista de massa. Usou o discurso não para expressar uma ideia, mas para produzir um efeito simbólico e mediático.

Na leitura clássica da retórica, Aristóteles chamaria esse tipo de ação de eikos, o provável, o verossímil mais eficaz do que o verdadeiro em política. Porque o que importa, afinal, não é o que se diz, mas o que se acredita ter sido dito. O “erro”, quando bem manejado, torna-se um instrumento de verossimilhança, capaz de transformar o recuo em vitória e a contradição em estratégia.

Derrite não apenas redigiu um relatório. Ele encenou um ato de poder e o fez com plena consciência dos signos, das palavras e dos sentidos que mobilizava. O PL Antifacção pode ser uma proposta legislativa, mas o seu relator transformou o processo em um projeto de comunicação política.

E, nesse jogo, o erro foi apenas o disfarce da intenção.

Por Hosa Freitas
Jornalista, consultora e especialista em comunicação institucional.

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